
Julho/2025
Véu, luta e liberdade: lições para o feminismo brasileiro
Colunista: Lorena Amorelli, Doutoranda do PPGPSI-UFRN.

Diversos são os ideais culturais e estéticos que constituem, generificam e diferenciam o corpo: sapatos apertados, véus longos e pesados, espartilhos rígidos ou sutiãs modeladores são apenas alguns exemplos. As peças do vestuário feminino costumam ser mais do que simples expressões da moda, funcionando como instrumentos simbólicos e materiais de controle sobre os corpos das mulheres, restringindo seus movimentos e moldando suas silhuetas na forma desejada pelas normas sexuais. A associação entre as vestes e o controle da sexualidade feminina, certamente, não é nenhuma novidade e segue sendo reiteradamente lembrada nas expressões usuais que culpabilizam as roupas das mulheres pelas violências que sofrem.
A articulação entre estética, controle e sexualidade evidencia que o campo das opressões não se resume ao âmbito simbólico, efetivando-se materialmente e contando com a ossatura dos mecanismos históricos de exploração. As opressões, portanto, não são apenas ofensivas discursivas ou simbólicas, nem mesmo uma possibilidade, dentre outras, de interpretação da realidade. As opressões são o corpo de uma sociedade marcada pela contínua expropriação dos meios para efetivação da desigual distribuição. Por isso, é insuficiente abandonar as análises e estratégias ao sabor das transformações discursivas, como também é insuficiente caracterizá-las como simples dispositivos de normatização sexual ou padronização – os quais seriam combatidos por uma suposta “ativação” do corpo sensível, ou ainda pela simples mudança cultural.
As opressões não se desligam das razões econômicas da exploração, tampouco existem sem a força exercida pela incessante necessidade de expansão do Capital através da contínua produção da mais-valia. Uma vez que as opressões são a expressão de um sistema de dominação-exploração, elas não devem ser entendidas como um conjunto aleatório de atos individuais. Também a solução estritamente econômica perde o fio da meada ao desligar-se das análises das relações sociais como práticas concretas e cotidianas, sejam elas entre indivíduos, grupos, instituições ou nações.
Estado, família e propriedade privada, como já alertado por Engels, estão enlaçados pelo Direito e este, por sua vez, funciona como uma engrenagem que naturaliza, regula e legitima certas práticas, enquanto abre o horizonte para a criminalização de outras. A brutal morte de Mahsa Amini, em 2022, ao ser detida pela “polícia da moralidade” iraniana por usar de forma inadequada o hijab, ilustra tragicamente como essa engrenagem opera na prática. Sob o pretexto da defesa da moralidade, a jovem foi levada a um centro de detenção para uma “aula de reeducação”; esta aula de reeducação era, no entanto, uma sessão de espancamentos que resultou na sua morte. O episódio gerou uma forte onda de mobilizações caracterizadas pelos gritos repetidamente entoados: Jin, Jîyan, Azadî (Mulher, Vida, Liberdade). O mundo, então, acompanhou milhares de mulheres queimando seus véus e se organizando contra o domínio e a submissão impostos pelas leis da moralidade adotadas pelo Estado iraniano.
Um véu pode não ser só uma peça de roupa e, quando isso acontece, um fio de cabelo pode ser uma arma. O aumento do controle sobre as mulheres na instalação, consolidação e permanência de regimes autoritários não é nenhuma novidade. O estupro e as diversas expressões de violência física e sexual contra as mulheres foi e continuam sendo um elemento importante para colonizar e destruir os povos nativos, expulsando-os de suas terras e eliminando as gerações futuras. A submissão das mulheres está estreitamente vinculada às disputas por território, de igual modo, o controle sobre os nossos corpos (especialmente quanto à função reprodutiva) é um dos elementos que compõe as disputas de poder entre as nações. Por isso, às vezes, alguns fios de cabelo fora da ordem são uma sentença de morte.
Outras vezes, eles são o necessário para acender uma revolta. Desse acontecimento, precisamos retirar um aprendizado fundamental e orientador: as armas da guerra não serão as mesmas da revolução. Até mesmo porque lutas não se constroem do mesmo modo pelo qual se produzem guerras. As lutas se constroem, geralmente, a partir do que não se tem e é precisamente isso que constitui o que nos organizará enquanto “causa” coletiva.
Já havíamos aprendido antes que, em certos casos, será preciso lutar com pedras, tal como aconteceu na primeira intifada palestina contra a invasão israelense. Em 1987, jovens palestinos desafiaram o exército israelense – já bem munido, por sinal – com pedras e coquetéis molotov para evitar o avanço militar. Em 2025, esta realidade trágica, longe de ter sido superada, foi agravada: já se somam mais de 50.000 crianças mortas ou feridas, na faixa de Gaza, desde outubro de 2023. A situação em Gaza já não é somente preocupante, é perversa e sanguinária.
O relatório da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre os Territórios Palestinos Ocupados trouxe registros alarmantes sobre episódios de graves violações aos homens, mulheres e crianças palestinas. Segundo consta no documento, uma entrevistada afirmou que um soldado a ameaçou com um estupro coletivo, dizendo que a mataria e queimaria seus filhos. Outra mulher, que havia dado à luz dois meses antes de ser presa, foi cuspida no rosto e espancada até desmaiar. As denúncias recentes confirmam que detenções arbitrárias de palestinos e palestinas têm sido marcadas por torturas sexuais e humilhações: homens forçados a se despir, a beijar bandeiras israelenses, a imitar sons de animais, enquanto são espancados nos genitais até perderem a consciência; mulheres submetidas a ameaças de estupro coletivo, fotografadas sem consentimento em situações degradantes, espancadas, xingadas, arrastadas pelos cabelos e expostas publicamente.
Em contextos de guerra, sabemos que os corpos das mulheres tornam-se alvos estratégicos por representarem a continuidade da terra, da reprodução e da soberania de seus povos. Nesse sentido, a violência sexual se torna uma ferramenta central na lógica colonial. Isso pode ser facilmente verificado na fundação do Estado de sionista de israel, em que o estupro e outras formas de violência de gênero foram utilizados como instrumentos de terror com o objetivo de desestabilizar comunidades palestinas e forçá-las a deixar suas terras. Tais práticas revelam uma lógica sistemática de dominação que articula o colonialismo com o patriarcado. A sexualização da violência serve para marcar o corpo como propriedade violável e descartável.
A estratégia sionista é a mesma do colonialismo de séculos atrás: matam e destroem e se justificam dizendo que estão salvando os povos nativos da barbárie. Nesse século, essa narrativa é condecorada com o uso de pautas progressistas – inclusive as do feminismo – para justificar o avanço militar e velar os reais interesses em jogo. Assim, tentam utilizar a luta pela liberdade das mulheres para justificar o ataque ao Irã, por exemplo. No entanto, o que realmente o Estado israelense está fazendo é estuprar, violar e assassinar mulheres e crianças, matando-as de fome e chamando violência de disciplina e liberdade. Este estado não levará liberdade a lugar nenhum e destruirá todas as vidas que puder para alcançar sua pretensão de domínio. Igualmente, seu fiel parceiro bélico, os Estados Unidos, está cada vez mais distante de ser um paraíso para mulheres e crianças.
A liberdade para mulheres e crianças no Oriente Médio não virá pelas armas dos grandes poderes estrangeiros, mas pela força de mobilização dos povos que ali vivem. Ao ocidente deve caber o apoio às lutas dos povos dominados e duras medidas de boicote, desinvestimento e sanções a israel. Aos feminismos do ocidente, deve caber modos de organização internacionalistas orientados contra o imperialismo e o colonialismo. O feminismo no ocidente não deveria ser “um espectador silencioso das muitas formas cotidianas de criminalidade estatal”.
Ao feminismo brasileiro, cabe uma organização expressiva e inegociável contra a ingerência imperialista, especialmente norte-americana. No Brasil, as mulheres conhecem muito bem os efeitos devastadores da submissão aos poderes estrangeiros: a esterilização em massa de mulheres brasileiras em nome da segurança nacional dos Estados Unidos – percebam que a justificativa para o avanço imperialista sequer muda sua aparência. O Relatório Kissinger embasou as políticas de planejamento familiar no Brasil, resultando na esterilização de quase metade da população feminina em idade reprodutiva na época. Este relatório defendia que o controle populacional nos países menos desenvolvidos era uma preocupação para a segurança nacional dos Estados Unidos e foi adotado, por Gerald Ford, como política oficial da nação estado-unidense, visando países como Índia, Turquia, Paquistão, Egito, Colômbia e Brasil.
Essa lógica imperialista não é nova e nem desconhecida. É certo que os grandes impérios de hoje se ergueram através da exploração dos povos colonizados, incitaram guerras e dizimaram populações inteiras. Por isso, nossa libertação não reside nos seus poderes. Nossas armas não serão as deles. Nossas lutas deverão ser contra a guerra deles.
Referências:
Abu-Lughod, Lila, Rema Hammami and Nadera Shalhoub-Kevorkian (2023). The Cunning of Gender Violence: Geopolitics and Feminism.