top of page

Janeiro/2025

Direitos sexuais e reprodutivos é coisa de criança?

Colunista: Lorena Amorelli, Doutoranda do PPGPSI-UFRN.

Direitos sexuais e reprodutivos é coisa de criança?

    Recentemente, acompanhamos no Brasil a intensa mobilização social em torno do Projeto de Lei 1904/24, conhecido popularmente como PL da Gravidez Infantil. Este projeto visa equiparar os abortos realizados após a 22ª semanas de gestação ao crime de homicídio simples e intenta demarcar uma restrição temporal para o procedimento, mesmo nos casos previstos como excluídos de punibilidade no Código Penal.

    Após forte mobilização social e profundo rechaço ao projeto, considerado antidemocrático e retrógrado pelos mais diversos setores da sociedade, o presidente da Câmara recuou com a votação que seria tramitada em caráter de urgência. Entretanto, destacou a necessidade de amplo e aberto debate sobre o aborto com a sociedade civil.

    Já em 2023, observamos também o destaque do ministro Luís Roberto Barroso na pauta da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Esse destaque ocorreu logo após o voto favorável da ministra Rosa Weber e paralisou temporariamente o andamento da pauta no STF; o ministro argumentou que o debate não estava “suficientemente amadurecido” na sociedade.

    Contudo, é fundamental ressaltar que a convocação dos poderes democráticos a se posicionarem a respeito do aborto resulta da própria articulação dos movimentos sociais e dos embates travados na sociedade civil acerca da temática. Nesse sentido, o argumento da escassez de debate na sociedade não parece corresponder à realidade dos últimos anos, pois essa pauta tem ocupado continuamente um lugar nas discussões cotidianas. Conquanto, compreendemos a persistência da necessidade de fomentar um espaço contínuo de luta e mobilização em torno da temática, fortalecendo e qualificando as discussões sobre aborto no Brasil. É crucial, pois, compreender como esta pauta articula-se de modo mais amplo à justiça reprodutiva e à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, a continuidade dos debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos é frequentemente obstaculizada pela dificuldade de incluir a sexualidade no âmbito das disputas em torno das políticas sociais. Esse desafio torna-se ainda maior e mais polêmico quando nos lançamos às discussões sobre as sexualidades nas infâncias.

    Os obstáculos encontrados no debate sobre a dimensão sexual na infância decorrem de uma ideia mistificadora, a qual atribui certa premissa de pureza às crianças. Ariés (1981) afirma que, nas sociedades ocidentais modernas, o ideal de pureza marcará a construção do infantil, delimitando a sexualidade como elemento diferencial entre crianças e adultos. Esta premissa, por sua vez, surgirá acompanhada de uma concepção que une proteção à repressão, isto é, de um entendimento de que a proteção à “inocência” da criança viria através da repressão dos conteúdos sexuais ligados ao infantil. Nesse sentido, a repressão não incide somente sobre a sexualidade, mas também sobre a possibilidade de construir saber e diálogo acerca do sexual na formação do sujeito.

    Em consonância, observamos a prevalência do silêncio e do silenciamento a respeito da sexualidade. Entretanto, essa construção idealizada da inocência da criança parece trabalhar na direção oposta ao entendimento decisivo da criança como um sujeito de direitos, conforme delineado pelo Estatuto Da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

    O ideal da pureza infantil perde de vista a compreensão da sexualidade como uma dimensão humana estruturante dos sujeitos, ou seja, como um elemento que participa direta e ativamente do desenvolvimento biopsicossocial de cada indivíduo. Para retomar e incluir a face do sexual na formação é preciso, pois, fazer uma distinção capital entre a sexualidade e o puro ato sexual. Quando tratamos da sexualidade estamos nos referindo aos diversos aspectos do campo da afetividade, da identidade e das trocas humanas. É um grave equívoco considerar que o sexual está restrito à genitalidade e à reprodução, pois, como demonstrado por Freud (1905) e reiterado por Klein (1926), Foucault (1976), e inúmeros autores até os dias atuais, a sexualidade ultrapassa o mero domínio reprodutivo e não se restringe ao simples exercício da função biológica humana. A sexualidade, assim, diz respeito a maneira como apreendemos nosso corpo junto ao outro e sobre como construímos este corpo nas relações sociais. O sexual, portanto, é nada mais do que aquilo que se refere às relações do sujeito com o próprio corpo e do sujeito com o mundo.

    Sendo assim, precisamos ultrapassar a barreira do silêncio quando tratamos da sexualidade. Ainda, é fundamental sustentar que as discussões sobre a sexualidade devem pautar nossos constructos sociais, não se restringindo a debater somente as temáticas relativas às violências sexuais.

    Concomitantemente, no país com números alarmantes de estupros de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, é urgente transformar os debates sobre a sexualidade em estratégias de intervenção e combate à violência. A situação do nosso país é tão grave que, só no ano de 2023, foram registrados 64.430 casos de estupro de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, sendo que a maioria dos casos (53.895 casos) foram cometidos contra crianças de 0 a 14 anos (UNICEF BRASIL, 2024). Cabe, portanto, destacar que o silêncio em torno da sexualidade caminha junto ao aumento da violação sexual de crianças e adolescentes, de modo que desconsiderar a importância das pautas sobre os direitos sexuais e reprodutivos nas agendas políticas da juventude não é apenas um erro, mas sobretudo uma negligência.

    Assim, se partimos de um ponto de vista garantista, o mínimo pretendido deve ser o compromisso do Estado em garantir, respeitar e efetivar o direito de uma infância protegida e segura para desenvolvimento de seus mais amplos modos de existência, compreendendo que, para tanto, é indispensável cuidar dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Este cuidado deve orientar-se por uma perspectiva na qual a sexualidade seja reconhecida em consonância com as peculiaridades de cada momento do desenvolvimento infantil.

    Ademais, tratar dos direitos sexuais e reprodutivos na juventude convoca inexoravelmente às discussões mais abrangentes sobre as condições de produção e reprodução da vida. Em outras palavras, é insuficiente abordar os direitos sexuais isoladamente. É preciso, pois, considerar a articulação destes às condições estruturais sociais e econômicas. Ao tomarmos esta articulação como ponto de partida e horizonte, fenômenos aparentemente opostos da vida reprodutiva, como a concepção e o aborto, podem ser analisados como partes integrantes de um mesmo processo, que se refere à produção da vida em sociedade. Em suma, estamos diante da responsabilidade de construir um projeto de sociedade que não se demita da tarefa de assumir a sexualidade como um elemento crucial da nossa formação enquanto sujeitos de direitos. Nesse sentido, direitos sexuais e reprodutivos é sim coisa de criança. Violência, opressão e violação, não.


REFERÊNCIAS:

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.


BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990.


FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1976.


FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das obras completas, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Original publicado em 1905.


KLEIN, Melanie. Psicanálise da Criança. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1981. Original publicado em 1926.


UNICEF. Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública: UNICEF Brasil, 2024.

OBIJUV - Laboratório de Psicologia - UFRN campus Natal - RN

bottom of page