
Fevereiro/2025
O antifeminismo nas redes e a ameaça aos direitos e liberdades de meninas e jovens
Colunista: Manuella Guedes, Doutoranda do PPGPSI-UFRN.

A expansão e os avanços demarcados pela extrema direita têm sido um fenômeno mundial, demonstrado de forma expressiva na realidade brasileira com o recrudescimento e alinhamento neoliberal e conservador. Muito se atrela as gerações mais antigas a adesão às pautas, concepções e práticas de cunho conservador, desconsiderando a ampla e profunda difusão que tem se dado entre as juventudes, mediada pelo acesso à internet e, mais precisamente, pelas redes sociais. Os processos de engajamento político, dentre outras variáveis, vêm sendo influenciados pelas redes sociais na construção de identidades conservadoras entre as juventudes, que passam a se apropriar de discursos reacionários, armamentistas, anti-gênero e antifeministas, dentre outros.
Pesquisas que têm se dedicado a entender posicionamentos ideológicos entre jovens e suas motivações, a exemplo da pesquisa conduzida pelo Kings College e divulgada pelo Financial Times, trazem à tona o conservadorismo presente na ‘geração z’, mas com importante diferença entre os gêneros, impulsionado pela chamada quarta onda do feminismo, que é definida pelo ativismo nas redes sociais. Isso significa dizer que jovens do gênero masculino tem assumido concepções mais conservadoras e, diferentemente, a parcela feminina tem maior adesão as pautas progressistas (G1, 2024).
Esse aspecto, no entanto, acaba por mascarar um marcador importante ao considerarmos a influência das redes na construção de identidades: a crescente onda de disseminação de conteúdos nas redes sociais voltados para meninas e mulheres jovens, explicitamente vinculados a um saudosismo renitente do papel tradicional da mulher e um reforço aos seus supostos papéis naturais, que trazem à tona, entre estas, discussões em torno da noção de ‘esposa tradicional’ e ‘esposa troféu’, da ‘mulher com ‘m’ minúsculo’, de uma suposta 'energia feminina' que se propõem a redefinir (ou seria retroceder?) o papel da mulher na sociedade a partir da crítica às conquistas e avanços políticos e sociais das mulheres, fruto das lutas históricas travadas pelos movimentos feministas.
Apesar de parecer pauta ainda inferior em relação à necessidade de combate da expressiva e assustadora misoginia entre os jovens meninos e homens no meio digital, o crescente apelo às noções conservadoras entre meninas é, na verdade, o outro lado da moeda. Se no primeiro caso já se observa como resultado a autoidentificação destes no espectro ideológico conservador, o que se observa no caso das meninas é um projeto em curso que, inegavelmente, encontra campo fértil.
Se nas lutas históricas dos movimentos feministas tinha centralidade a busca pela liberdade sexual e econômica, a luta por direitos reprodutivos, pela socialização do trabalho doméstico e pelo fim da divisão sexual do trabalho, somados a reivindicação intransigente pelo fim da opressão feminina e da violência de gênero, o que se observa hoje é a tentativa de transformar essas conquistas, ainda que parciais, em perdas, em ônus. Entretanto, sabe-se que isso não é novo.
Em todo percurso histórico dos movimentos feministas, as pautas supracitadas foram na contramão da concepção hegemônica de uma ‘essência’ e ‘natureza’ femininas. Sendo assim, no momento atual, a complexidade que marca essa ameaça conservadora exige uma análise concreta da realidade de meninas e mulheres – aqui, em especial, de meninas e mulheres brasileiras.
Dados da OXFAM Brasil (2021) demonstram que as desigualdades de gênero estão expressas nos mais diversos espaços sociais e conformam um contexto socioeconômico desfavorável principalmente para mulheres e meninas negras. Segundo a OXFAM (2020), o trabalho doméstico e de cuidado é essencialmente feminino, demonstrando que 80% destes trabalhadores no mundo são mulheres, que acumulam essa função à participação ativa no mercado de trabalho, entretanto, lidando com as disparidades salariais, massiva informalidade, inacesso aos direitos trabalhistas e à seguridade social. Na análise destes fatores, é indissociável a consideração das expressões das violências, que também atravessam e se expressam nas diferentes realidades, seja através do assédio e da importunação sexual nos espaços de trabalho e públicos, bem como as inúmeras e diversas violências perpetradas no espaço doméstico e no âmbito das relações íntimas e sexuais.
Sobrecarga laboral, emocional e mental, que se justificam pelas múltiplas jornadas e um cenário absolutamente desfavorável para as mulheres, tornando-as um dos segmentos mais pauperizados e precarizados da classe trabalhadora, nutrem as bases para o crescimento e a apropriação de discursos conservadores em um contexto de desigualdades acentuadas. O argumento aqui é de que, na contramão das lutas feministas para superação das questões supracitadas, há como tendência um redirecionamento das mulheres às alternativas de ‘empoderamento feminino’ pela via da extrema-direita conservadora. Em um contexto de neoliberalismo e aprofundamento da crise estrutural do capital, os direitos tão arduamente conquistados são vistos como a perda de privilégios, considerando as disparidades enfrentadas tão ferozmente na realidade, em especial no contexto do capitalismo dependente, que intensifica as relações desiguais de gênero, raça e classe (Vazquez e Falcão, 2020).
Assim, a noção de fragilidade feminina e o discurso protecionista como sinônimo de valorização feminina em sua essência e natureza ganha força e espaço. Trata-se, na prática, de um sexismo benevolente (Cas Mudde, 2018), ao definir mulheres como incapazes ou inferiores, ao mesmo tempo em que estabelecem que, por isso, precisam de mais direitos para serem "protegidas". Esse aspecto torna possível, num primeiro momento, que meninas e mulheres comuns se associem a tais discursos, vendo proteção na subalternização.
Qualquer usuário das redes sociais e do ciberespaço já acessou, recebeu ou foi impactado de alguma maneira por conteúdos que difundem ideias que consideram que no lar as mulheres estariam menos expostas as pressões e hostilidades do mundo do trabalho, que poderiam assumir o papel de cuidadoras dos filhos com exclusividade, sem que precisem acumular múltiplas funções e lidar com a exaustão da tripla jornada de trabalho, além da retirada da pressão sobre as responsabilidades econômicas da família que, em tese, devem ser de total responsabilidade dos homens, bem como, ao assumir as funções femininas, estariam preservando seu casamento, exercendo o papel de cuidado da relação afetiva/matrimonial e evitando as insatisfações masculinas (que são usadas como justificativa, por vezes, para a violência doméstica).
A esses aspectos somam-se os apelos à conduta feminina, calcados em concepções moralistas sobre sexualidade, família e docilidade, como elementos reforçadores para a construção da suposta “mulher de valor”, que seria merecedora dessa proteção. Ou seja, um apelo às concepções naturalistas e tradicionalistas de um lugar que seria em essência da mulher na sociedade, dotado de vantagens e que poderia ser obtido através do retrocesso das conquistas feministas, no reencontro com um modelo assumido num passado histórico nostálgico.
Análises superficiais das realidades das mulheres brasileiras, uma agenda política conservadora em disputa, o apagamento da memória coletiva das lutas feministas e a persistência das opressões, desigualdades e violências abrem os caminhos para alternativas simplistas e ilusórias, que são verdadeiras armadilhas para a subjugação de meninas e mulheres aos ditames patriarcais, racistas e capitalistas.
No vasto universo das redes sociais, com menor nível de regulação a cada dia, em especial com as mudanças nas políticas de moderação de conteúdo, a dinâmica de expansão do conservadorismo entre jovens se utiliza do entretenimento, a partir de memes, vídeos curtíssimos, Fake News, linguagem extremamente palatável e identificação entre pares para radicalizar jovens à direita e difundir as ideias antifeministas e misóginas até aqui apontadas. As famosas trends entre os jovens que abordam a temática - às vezes de maneira quase imperceptível, às vezes de maneira extremamente explícita - apostam em discursos, exemplos, argumentos e, por vezes, numa estética, que glamouriza e romantiza a subalternização, objetificação, passividade e subserviência feminina.
A narrativa, se analisada mais profundamente, desvela que as narrativas se alinham numa mesma perspectiva: a promessa de uma vida melhor para as mulheres sob a justificativa de que, para isso, é necessário se subordinar, abdicar de direitos e liberdades, assumir papéis de gênero limitantes e abandonar sua autonomia. Tudo isso disfarçado de conteúdo rápido e inofensivo flutuando nas redes.
Entretanto, para além da exposição sistemática e reiterada, considera-se aqui, que outras razões têm levado meninas e jovens mulheres a aderirem a essas ideias. Essa adesão denuncia uma tendência de banalização e desvalorização das conquistas feministas, que contrastam fortemente com uma realidade social ainda marcada por desigualdades e desafios significativos para as mulheres; o distanciamento e falta de compreensão sobre os contextos opressivos enfrentados por mulheres em períodos anteriores à conquista de seus direitos, somados a uma visão nostálgica e idealizada do passado; e a precarização da vida atrelada à desesperança em um futuro estável (social e economicamente) para as mulheres. Sendo assim, a crescente adesão encontra terreno fértil, tanto nas redes sociais, na sua capacidade de ampla difusão de ideias, quanto na vida de meninas e jovens mulheres.
É inegável que, em contraponto aos avanços dessas concepções, as pautas feministas tem ampla difusão e adesão por parte de meninas, jovens e mulheres, se consolidando como um dos maiores movimentos sociais da América Latina e do mundo, entretanto, há que se considerar que a transição geracional exige do movimento a preservação da memória coletiva da história das mulheres, das lutas, dos avanços e retrocessos, bem como da capacidade de conscientização da raiz dos problemas e das alternativas e respostas em prol da autonomia, liberdade e pelo fim da opressão. Grande parte do que fundamenta os discursos conservadores nesse terreno é a afirmação de que não há mais necessidade das lutas e agendas feministas, assim como a concepção que a ascensão do feminismo e de suas conquistas foram e são nocivas para homens, mulheres, a sociedade em geral. Somados aos problemas estruturais supracitados, esse tipo de conteúdo explora as vulnerabilidades femininas e age na construção de identidades, subjetividades e posicionamentos políticos-ideológicos.
Meninas e mulheres que não conhecem sua história, que não compreendem as complexidades do entrelaçamento de mecanismos de opressão de gênero, raça e classe e suas determinações na realidade material e concreta, correm o risco de cair nas armadilhas que reforçarão essas estruturas opressivas. Como nos traz Hooks (2018), conscientizar sobre a opressão feminina, preservar e difundir a memória coletiva das lutas feministas, tornar acessível e aproximar das juventudes o conhecimento produzido no campo científico, além de protagoniza-las na construção de lutas e soluções são atos de resistência que, ao desnudar e romper com a idealização do passado como solução para os problemas atuais, dão passos fundamentais na proteção de meninas, adolescentes e mulheres e na construção de um presente e um futuro digno.
REFERÊNCIAS:
G1. Financial Times mostra distanciamento das ideologias políticas entre mulheres e homens da Geração Z. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/globonews/estudio-i/video/financial-times-mostra-distanciamento-das-ideologias-politicas-entre-mulheres-e-homens-da-geracao-z-12311821.ghtml. Acesso em 7 de fevereiro de 2025.
HOOKS, bell. (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de Bhuvi Libanio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
MUDDE, Cas. (2018). The Far Right Today. Cambridge: Polity Press.
OXFAM Brasil. Trabalho de cuidado: uma questão também econômica. 2020. Disponível em https://www.oxfam.org.br/blog/trabalho-de-cuidado-uma-questao-tambem-economica/. Acesso em 7 de feveiro de 2025.
OXFAM Brasil. Desigualdade de gênero: causas e consequências. 2021. Disponível em https://www.oxfam.org.br/blog/desigualdade-de-genero-causas-e-consequencias/. Acesso em 7 de fevereiro de 2025.
VAZQUEZ, A. C. B.; FALCÃO, A. T. S. Os impactos do neoliberalismo sobre as mulheres trabalhadoras: a esfera do cuidado e a precarização do trabalho feminino. O social em Questão, n. 43, p. 371-392, 2019. Disponível em: https://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_43_art_SL2.pdf. Acesso em 7 de fevereiro de 2025.