
Dezembro/2025
Gerson na Cova dos Leões
Colunista: Carmem Cavalcante - Psicóloga, Doutora em Psicologia

Ao invadir a jaula do zoológico, onde vive uma leoa, Gerson, um jovem de 19 anos, foi brutalmente atacado. Era uma manhã de domingo, em que famílias visitavam o zoológico e, em tempos de espetacularização da mídia, as cenas de violência que tiraram a vida do jovem foram registradas e o vídeo, viralizado. Os comentários nas postagens do vídeo são os mais ofensivos possíveis: desde "Ifood" até “suicídio com sucesso”; poucos refletiram de forma crítica sobre as cenas de horror. O espetáculo foi montado e a internet, principal meio de comunicação da atualidade constrói, discursivamente, a espetacularização dos acontecimentos da sociedade.
Gerson foi destituído do poder familiar, era um jovem como tantos outros a quem foi ofertado o Estado como pai. Ainda criança, ele e seus quatro irmãos foram destituídos de sua família por “negligência” materna. Filhos de uma mãe (e netos de uma avó) com diagnóstico de esquizofrenia, a quem faltou rede de apoio, e com uma rede socioassistencial frágil, restou, para Gerson e seus quatro irmãos, o acolhimento em instituições. Só não contavam que Gerson, talvez por, já naquele período, não se encaixar nas normas sociais, restaria sozinho na unidade de acolhimento e que ele veria seus quatro irmãos serem adotados por outras famílias, edificando sua condição de filho do Estado.
O destino de Gerson seguiu o que se esperava dele enquanto agente oculto e indesejado da sociedade de classes, já que esta encobre a pobreza e a não adaptação ao estilo de vida classista com a cortina quase transparente do discurso meritocrático. Deste modo, Gerson foi uma criança “invisível”, reservada ao seu lugar institucional e inserida num discurso perverso de inclusão social que marginaliza os improdutivos e que reforça e perpetua sua invalidez. Quando cresceu e compreendeu que, exatamente pela vida da marginalização, ele conseguia ser visto, ele gritou alto e fez das práticas infracionais uma estratégia de amparo, pois, assim, atraía os olhares do poder público e da sociedade.
Como adolescente, tornou-se visível através da ruptura da norma social estabelecida, materializando o estigma de periculosidade sob os olhos da sociedade. Gerson foi “só mais um”, que teve sua construção social forjada pela experiência da falta. Desde criança, ele foi subindo os degraus da institucionalização, passando de criança abandonada e invisível, passando a incomodar em razão da prática de atos infracionais, até ser morto e, finalmente, percebido como gente.
O jovem devorado pela leoa, ao passar pela linha perversa de uma inclusão que escancara e aprofunda a distância social produzida pelo sistema capitalista, recebeu tratamento corretivo do seu pai Estado, sendo direcionado para o cumprimento de medidas socioeducativas. O que acontece é que o Estado, esse ente cujo papel simbólico se confunde com um pai ausente, violento e violador, por vezes, apresenta o papel de reconciliador das contradições do capital, atuando no sentido de perpetuar o lugar de uma classe que lucra com o sistema econômico vigente, enquanto outra sofre com a falta de acesso a direitos básicos e com o crescimento da violência (Paniago, 2012). Daí, a questão social é transformada em “caso de polícia”.
Assim, o Estado Penal emerge no sentido de suprir os resquícios deixados pelo não investimento no Estado Social (Wacquant, 2003), pela falta de cuidado em saúde mental, que este pai Estado lhe negou. Este é o ponto que nos interessa. Porque o aparato estatal de políticas públicas não foi suficiente para dar amparo e garantir todos os direitos da criança que Gerson foi? Onde este pai errou? A resposta é densa, complexa e multifacetada.
Destituído da família, com histórico de negligência e abandono, com familiares diagnosticados com esquizofrenia, esquecido nas instituições de acolhimento por anos, o pai Estado (e seus leões) preferiu tratar Gerson como um problema comportamental que necessitava de correção. Com isso, a ele também foi negado o direito a um tratamento psicológico e psiquiátrico que desse conta do complexo contexto de extrema vulnerabilidade ao qual sempre esteve inserido.
O pai ausente instruiu Gerson de necessidades, não supriu o sentimento de abandono, seguiu abrindo lacunas; não ofertou o mínimo necessário para uma criança que teve negado o direito de pertencer a uma família. Os comportamentos arredios de Gerson passaram a ser o centro da atenção estatal, esquecendo que o menino nunca soube o que é sentir o carinho e o embalo de uma mãe. A referência familiar continuou como uma ferida aberta.
Ao entrar no recinto da leoa, Gerson desconsiderou todos os riscos porque, talvez, em sua falha construção social, não conseguiu conjecturar entre o que é seguro e o que não é, para si. Faltaram-lhe elementos que só poderiam ser adquiridos se tivesse capital cultural para esta análise. Gerson não teve acesso à educação, nem ao cuidado em saúde mental que pudesse minimizar os traumas da coleção de ausências que tirou sua vida. A leoa que o atacou não é a grande culpada pela tragédia que aconteceu no último domingo. O pai Estado e seus leões, sim.
Durante sua existência, foi "jogado" à cova dos leões pq o Estado Democratico de Direito, este pai ausente, já o havia eliminado do acesso a uma vida digna. A leoa fez o favor de resolver um problema que viria a ocupar uma vaga no sistema prisional, tecnologia penal para onde são enviados os improdutivos do capital; e a sociedade, por sua vez, passou a exigir “mais manicômios”, afinal, no acelerado mundo do capital, ele só serviria se tivesse um corpo docilizado, medicalizado. E Gerson passou a vida inteira gritando “NÃO” a isso.
REFERÊNCIAS:
Paniago, M. C. S. (2012). Mészaros e a incontrolabilidade do capital. São Paulo: Instituto Lukács.
Wacquant, L. (2003). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan.
Carmem Cavalcante é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Río Grande do Norte; membro do Observatório da Infância e Juventude em contextos de Violência (OBIJUV), psicóloga na equipe de referência das Promotoria da Infância do MP-RN.