
Julho/2025
A exploração sexual de crianças e adolescentes em contexto de grandes obras de infraestrutura e megaeventos
Colunistas: João Paulo Diogo, Assistente Social, Mestre em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN); Jenair Alves da Silva, Psicóloga, Doutora em Psicologia (UFRN).

Nas últimas décadas, o Brasil se notabilizou como sede de grandes eventos e palco de grandes obras de infraestrutura. A Copa do Mundo de 2014, os Jogos Olímpicos de 2016 e a multiplicação de projetos como hidrelétricas, portos, parques eólicos e solares foram tratados como símbolos do “desenvolvimento nacional”. Mas sob esse verniz de modernidade, escondem-se violações sistemáticas de direitos humanos e uma das mais graves e silenciadas é a exploração sexual de crianças e adolescentes.
Durante os megaeventos esportivos, denúncias de exploração sexual infantil aumentaram nas cidades-sede. Conforme o Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil (ANCOP, 2014), cidades como Salvador, Recife, Natal e Manaus, já conhecidas como rotas de exploração sexual, vivenciaram a intensificação desses crimes, em razão do aumento no fluxo de turistas e da ausência de medidas efetivas de proteção. O documento denuncia que “houve uma mercantilização da vida e dos corpos, com o aumento do tráfico de pessoas e da exploração sexual de mulheres, jovens e crianças”.
Em publicação da Childhood Brasil (2017), demonstra-se que a realização da Copa do Mundo de 2014 contribuiu para um cenário de risco ampliado, com fatores como: a chegada massiva de homens desacompanhados de suas famílias, a oferta de empregos temporários e precários, a suspensão das aulas sem alternativas protetivas, e o deslocamento de famílias para locais desconhecidos. A pesquisa da OaK Foundation e Brunel University London (Brackenridge, C. et al., 2013), realizada em parceria com a Childhood Brasil, conclui que “os megaeventos, quando não acompanhados de políticas públicas eficazes, ampliam significativamente os riscos de exploração sexual infantil”.
Esse padrão se repete em áreas de Grandes Obras de Infraestrutura (GOIs). Hidrelétricas, estradas, portos e complexos de energia renovável transformam o tecido social de comunidades interioranas. O fluxo de trabalhadores, geralmente homens jovens e migrantes, altera dinâmicas locais e gera “ecossistemas de exploração sexual”. Em estudo sobre o impacto das barragens na Amazônia, o pesquisador Araújo (2013) documentou que adolescentes eram aliciadas com promessas de dinheiro, aparelhos eletrônicos, comida, álcool e drogas. O ciclo de exploração se instala com a chegada dos empreendimentos e tende a se manter mesmo após a conclusão das obras.
Esses impactos, no entanto, raramente aparecem nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), pois o modelo de desenvolvimento que guia os megaprojetos no Brasil não é neutro. Ele reproduz desigualdades históricas e desconsidera os modos de vida muitas vezes desses territórios impactados, e quando esses projetos chegam aos territórios, o que se impõe é a força, não o diálogo. O PL 2.159/2021, em atual debate no congresso brasileiro (2025), defende a flexibilização do licenciamento ambiental, o que pode afetar, diretamente, a qualidade da produção destas análises de impacto, não apenas para empreendimentos de médio porte, como também para os de grande porte.
A negligência na previsão e prevenção dos impactos sociais dos megaeventos e obras estruturantes cria um ambiente de impunidade e normalização da violência contra crianças e adolescentes. A omissão do Estado e das empresas na abordagem desse tema revela uma lógica perversa: o que não se vê, não se regula.
A exploração sexual de crianças e adolescentes em áreas de Grandes Obras de Infraestrutura (GOIs) e megaeventos é uma grave violação de direitos humanos que não pode ser dissociada das operações empresariais que a fomentam. A análise do caso das barragens de Rondônia, dos casos da Copa do Mundo, grandes festivais e eventos esportivos, à luz dos fundamentos sobre Direitos Humanos e Empresas, revela como um modelo de negócio focado no lucro e na execução ignora seus custos humanos mais profundos.
A análise do fenômeno denominado “filhos dos ventos” revela uma relação direta entre a instalação de parques eólicos e o aumento da vulnerabilidade social em comunidades impactadas, com implicações específicas para os direitos de crianças e adolescentes. Apesar da escassez de estudos específicos sobre o tema, o termo é empregado para descrever crianças nascidas em áreas marcadas pela chegada de trabalhadores temporários e pelo aumento da população masculina não local. Esse contexto modifica as dinâmicas sociais locais, potencializando riscos como abuso, exploração sexual e gravidez precoce entre adolescentes, especialmente em regiões com infraestrutura insuficiente para a proteção social e a garantia dos direitos infantojuvenis.
Relatórios e estudos produzidos por instituições de proteção social indicam que grandes obras temporárias, como a construção de parques eólicos, ampliam os fatores de risco para a violação dos direitos de crianças e adolescentes, incluindo exploração sexual e tráfico de pessoas. Esse cenário é agravado pelo influxo de trabalhadores migrantes e pela intensificação das atividades econômicas informais, o que demanda o fortalecimento de políticas públicas específicas para a prevenção e proteção desses grupos vulneráveis. A implementação de estratégias intersetoriais que promovam a proteção integral, a garantia de acesso a serviços socioassistenciais e o monitoramento contínuo das condições locais é fundamental para mitigar esses impactos e assegurar os direitos de crianças e adolescentes nas regiões afetadas.
É imperativo afirmar que as estratégias já estão colocadas na mesa há algum tempo, tendo como uma das principais delas, para o setor empresarial, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, documento das Nações Unidas (2021), que fornece um roteiro claro e pragmático para a responsabilização corporativa. Ele estabelece que a proteção infantil não é uma opção, mas uma obrigação. As empresas têm o dever de conhecer e agir sobre os impactos de suas atividades, desde a prevenção do trabalho infantil em suas piores formas até a garantia de que seu legado na região não seja de desagregação social e violência. Essa responsabilidade é ainda mais fomentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que estabelece que empresas precisam cumprir o dever de não colocar em risco a integridade física, social, moral e/ou psicológica de crianças e/ou adolescentes.
Para tanto, é necessário que governos, investidores e a sociedade civil exijam que as empresas que operam em contextos de Grandes Obras de Infraestrutura (GOIs) e Megaeventos adotem e implementem esses princípios de forma rigorosa, superando a invisibilidade histórica dos direitos da criança nos processos de decisão econômica. O verdadeiro desenvolvimento sustentável só será alcançado quando o crescimento econômico deixar de ocorrer à custa da dignidade e da segurança das populações mais vulneráveis, especialmente as crianças e os adolescentes.
Esses cenários escancaram uma omissão gravíssima: a falta de responsabilização das empresas envolvidas, com o dever de respeitar os direitos humanos como um todo, em especial de crianças e adolescentes, prevenir impactos negativos e reparar danos causados ou contribuídos por suas atividades.
É urgente mudar esse cenário. A inclusão obrigatória de medidas protetivas nos processos de licenciamento ambiental de megaempreendimentos, grandes obras e no processo de licenciamento e fiscalização de megaeventos é algo básico. É necessário também criar protocolos específicos de prevenção à exploração sexual, garantir o funcionamento de Conselhos Tutelares fortalecidos e atentos às demandas específicas desta problemática nas áreas impactadas e responsabilizar civil e criminalmente empresas que negligenciam esses riscos.
Em breve, o Brasil deve disparar o processo de revisão do Plano Nacional Decenal de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e este deve ser um tema importante a ser pautado junto às comunidades que são tomadas pela presença de grandes intervenções em suas rotinas, em seus contextos sociais, em nome do progresso, de um desenvolvimento que não deixa legado significativo e produtivo, mas rastros de violência e negação de direitos.
REFERÊNCIAS:
ARTICULAÇÃO NACIONAL DOS COMITÊS POPULARES DA COPA E DAS OLIMPÍADAS; FUNDAÇÃO HEINRICH BÖLL BRASIL; FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS; ETTERN IPPUR UFRJ; OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES; PACS. Dossiê Megaeventos e Violação dos Direitos Humanos no Brasil 2014. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, Fundo Brasil de Direitos Humanos, ETTERN IPPUR UFRJ e Observatório das Metrópoles, 2014. 144 p. Disponível em: https://br.boell.org/pt-br/2014/11/14/dossie-megaeventos-e-violacoes-dos-direitos-humanos-no-brasil-2014. Acesso em: 27 jul. 2025.
ARAÚJO, Wagner dos Reis Marques. Mercado do Sexo e da Exploracao sexual em Areas de Barragens na Amazônia Brasileira. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.
BRACKENRIDGE, Celia; PALMER‑FELGATE, Sarah; RHIND, Daniel; HILLS, Laura; KAY, Tess; TIIVAS, Anne; FAULKNER, Lucy; LINDSAY, Iain; et al. Child Exploitation and the FIFA World Cup : a review of risks and protective interventions. London: Brunel University London, 2013. 1 v. Relatório encomendado pelo Child Abuse Programme da Oak Foundation.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 29 jul. 2025.
CHILDHOOD BRASIL. Grandes Eventos e Infância. Disponível em: https://www.childhood.org.br/como-protegemos/grandes-eventos-e-infancia/. Acesso em: 26 jul. 2025.
CHILDHOOD BRASIL. Pesquisa Violação de Direitos de Crianças e Adolescentes em Grandes Eventos Esportivos – Copa do Mundo 2014. São Paulo: Childhood Brasil, 21 set. 2017. Disponível em: https://ch-wordpress.s3.amazonaws.com/uploads/2022/12/pesquisa-violacao-de-direitos-de-criancas-e-adolescentes-em-grandes-eventos-esportivos--copa-do-mundo-2014.pdf. Acesso em: 26 jul. 2025.
NAÇÕES UNIDAS. Princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos: implementação do marco de "proteger, respeitar e reparar" das Nações Unidas. Genebra: Conselho de Direitos Humanos da ONU, 2011. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/GuidingPrinciplesBusinessHR_pt.pdf. Acesso em: 29 jul. 2025.
OLIVEIRA, Assis da Costa; SCABIN, Flávia. Interseções de direitos humanos e empresas com os direitos das crianças e dos adolescentes. Belém: Santa Cruz, 2018.